O início e o fim

sábado, 12 de outubro de 2013

I. O primeiro dia:


- Me diz você, então, o que é amor!

- Segundo o dicionário Aurélio, amor é um sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, um sentimento de dedicação absoluta. É também uma inclinação ditada por laços de família ou uma inclinação sexual forte por outra pessoa. É afeição, amizade, simpatia. Ou o objeto do amor... Mas, se quiser uma explicação mais curta, o amor é simplesmente o que sinto por você.
(Xícara azul quebrada, p. 71)



Nunca gostei de finais felizes. Sempre preferi um final mais dúbio, por assim dizer, que foge dos clichês. Um último parágrafo áspero, condizente com a realidade. Sem os exageros que se veem em muitos livros.

Foi nessa época de insatisfação literária que eu a conheci. Não, a reconheci, porque ela já parecia existir em mim há tempos. Desde criança, era um garoto tímido e reservado, que esconde-se atrás de um romance. Isso rendia vários apelidos ofensivos, contudo não me importava. Permaneci assim até pelo menos meus vinte anos, depois passei a ser alguém relativamente "normal".

Aos quinze anos, costumava ir muito à biblioteca municipal. Meus pais não sustentavam meu vício, portanto eu tinha que me virar. A melhor alternativa era a biblioteca, com um leque de opções mais abrangente. Eu passava horas e horas em meio aos livros, o corpo como que preso às páginas. Meus autores preferidos eram os que quase ninguém gostava. Aqueles que podiam ser qualquer pessoa que encontrássemos na rua.

Eu não esperava encontrar uma pessoa especial. Tinha quinze anos. Era retraído. Vivia na biblioteca. Mas, tal como as reviravoltas de um livro, aconteceu. Eu me apaixonei. Numa certa manhã, entrei na biblioteca e a vi, na recepção. Passei por ela rapidamente, não prestei uma real atenção. Fui para o cantinho perto dos livros de teatro. Depois de umas três horas, ouvi uma voz ao meu lado.

- Oi, já estamos fechando.

A voz era adulta e comum, um pouco grave, ou rouca, não sei discernir até hoje. Ela me olhava ansiosa, consultando o relógio. Era bonita, olhos azuis e opacos, os cabelos negros e brilhantes. Uma frase percorreu minha mente: de que livro ela tinha surgido? Não parecia ser uma mulher real.

Devo tê-la encarado demais, porque ela passou dedilhar os dedos na capa do livro que segurava. Sabia que a mulher queria ir embora, porém eu queria ficar e fixá-la eternamente na cabeça.

- Você me escutou?

Não, eu não tinha escutado. Olhava sua boca agora, o modo como ela franzia e desfranzia de segundo em segundo. Em seguida, desviei os olhos para a sua mão e reparei no livro apertava. Para minha surpresa, era o melhor livro que eu já lera, Xícara azul quebrada.

- Esse é o meu livro preferido - murmurei.

- Ah, agora você fala. Olha, eu disse que tenho que fechar, é o meu primeiro dia aqui... Espera aí, o que você disse?

Identifiquei de pronto a mudança de olhar dela. Era o olhar que eu também continha: o de uma leitora que amava de livros, mas não possuía um amigo para compartilhar seu ânimo. Tinha encontrado a minha metade.

- Xícara azul quebrada é meu livro preferido - repeti.

Ela sorriu. Senti um formigamento no peito.

- Eu amo esse livro! O autor é pouco divulgado, entretanto, é magnífico. Desculpe, não me apresentei, sou Ana. A bibliotecária provisória enquanto a minha tia está de licença.

- Prazer, Vinicius.

Apertamos as mãos. Ana ainda sorria, nem parecia lembrar do motivo que a levou até ali. Resolvi não recordá-la.

- João da Silva criou uma obra-prima! - Ela continuou, empolgada. Estava linda, linda. - Falar do relacionamento de um casal, com seus verdadeiros altos e baixos, é o que diferencia de outros livros por aí. E a gente sabe que no final eles não ficarão juntos, mas torce do mesmo jeito. Emocionante!

Concordei. Era um livro que contava uma história real, doce e dura, como a vida. De histórias assim que eu gostava, conforme falei. Conhecer outra pessoa que gostava de ler deixou-me em êxtase. Só leitores sabem como é essa sensação.

Ana parou de sorrir. Infelizmente, lembrou-se do seu dever.

- Vinicius, adorei te conhecer. Tenho que fechar a biblioteca agora, mas amanhã finalizamos esta conversa.

Me dirigi à saída, acenando da porta. Fiquei um minuto parado, vendo-a trancar as janelas. O modo como a luz incidia em seu rosto tornou essa imagem inesquecível.



II. O último dia


Tudo aconteceu de forma suave. Sem fúria, sem choque, sem uma lágrima sequer. Tanto que me perguntei se era mesmo o fim.
(Xícara azul quebrada, p. 200)



Os vinte e seis dias que vivi com ela foram maravilhosos. Estendi o tempo na biblioteca só para vê-la mais. Nos tornamos grandes amigos, líamos e ríamos juntos. Pela primeira vez, eu não estava sozinho.

Pude conhecer Ana em sua totalidade. Ela era muito especial, conservava um brilho travesso no rosto, apesar dos seus quase trinta anos. Era doce, tão doce. Lia para as crianças e criava histórias próprias, todas sem sentido, mas divertidas. Eu me encantava com cada parte sua que descobria.

Debatíamos os clássicos da literatura com ardor e não concordávamos em nenhum argumento. Ela até ficava chateada, às vezes, e era bela quando ficava assim. Ana sempre acabava rindo dessas discussões. Nem parecia que havia a diferença de 14 anos entre nós. Eu me encontrei nela. Fiquei mais alegre.

Mas eu sabia que aquilo não duraria tanto quanto desejava. As horas voaram e o dia derradeiro chegou. Tentei não ficar ansioso, o que mostrou-se impossível. Ela ia embora. Ia distanciar-se de mim. Cheguei à biblioteca arrasado.

- Oi – disse, logo que me aproximei dela.

Ana fechou o livro que folheava e sorriu, radiante. Pensei que a encontraria melancólica, triste porque não nos veríamos mais. No entanto, ela se achava tão animada quanto nas outras semanas.

- Oi! E então, o que vamos fazer hoje?

- Não sei, o que você quiser - respondi.

Ela percebeu minha tristeza. Segurou minhas mãos e as apertou.

- Não fique triste. Nós vamos manter contato. Não é porque irei embora que a amizade tem que acabar.

Ana não compreendia. Ela era a fonte da felicidade. Agora que não a veria mais, eu voltaria a ser solitário. E eu me acostumei em ser feliz. Como viver sem a luminosidade dela?

- Eu amo você! Eu preciso estar com você. - as palavras saíram antes que eu pudesse pará-las.

Ela não se surpreendeu. Seus olhos encheram-se de ternura.

- É comum na sua idade se apaixonar por alguém mais velho, com quem dividiu sua vida. Mas você vai superar. É uma atração, somente. Ainda irá amar muitas e muitas vezes. Com o tempo eu perderei a importância, serei uma lembrança.

- Não é só uma paixão passageira, Ana! Você é a pessoa que mais amo nesse mundo!

Algumas crianças entraram na biblioteca. Ela os observou por um minuto, voltando a me olhar em seguida. Ela estava sofrendo. Nunca a vira triste dessa forma.

- Você não está conseguindo ver a razão, Vinicius. Esse amor é impossível, e por vários motivos.

Eu me recusava a acreditar nisso.

- Pensei que você gostasse de mim. Que eu significava alguma coisa.

Ana se afastou, uma pequena lágrima traçando seu rosto. Tive vontade de abraçá-la. De acalmá-la.  

- Eu gosto. - ela falou, a voz mais rouca que o normal - Eu... Amo. Eu te amo. E por isso preciso ser justa com nós dois. Você é jovem demais, vai entender no futuro. Acho melhor você ir.

Eu fui. Olhei a linda face de Ana, a face que nunca mais veria, e saí da biblioteca.


Uma semana depois, recebi uma carta dela. Não respondi. Não quis estragar o nosso final perfeito. 

 (11/10/13)





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