Cartas de baralho

sábado, 27 de abril de 2013

Gregório acordou sobressaltado. Tivera um daqueles pesadelos típicos, em que as pessoas ficam presas em labirintos ou fogem de estranhos. Assustado, tentou levantar-se. Não conseguiu, contudo. A cama parecia maior e seus membros não movimentavam-se. Ele não tinha mais pés, mãos ou tronco. Ao olhar para si, percebeu que transformara-se numa carta de baralho. Ainda podia pensar e ver, mas era retangular, pequeno e leve, sem nenhuma característica humana. Quis gritar um socorro, o que também foi impossível, já que não tinha boca.

Enquanto tentava assimilar sua situação, a porta do quarto foi aberta.

- Querido, o café está pronto - a esposa falou, mexendo nos cobertores. Quando não o viu na cama, ela vasculhou o pequeno banheiro, procurando-no.

- Gregório, cadê você? Ah, deve ter ido mais cedo para o trabalho, ele nunca me avisa.

Ela sentou-se na cama, suspirando. Passando os dedos pelos lençóis, encontrou a carta de baralho. A olhou atentamente, os pensamentos distantes. Por fim, guardou a carta no bolso da calça.



Na escuridão, Gregório pensou no que lhe acontecera. O dia anterior fora normal, sem surpresas. Ele saiu para o trabalho, flertou com a secretária, almoçou com os amigos e bebeu uma cerveja. Depois voltou para casa, jantou e dormiu. Não fizera nada que justificasse o por quê de acordar assim. Sua vida era como a de todos os outros, então ser castigado deste jeito não tinha sentido.

Deixando de lado as divagações, notou que a mulher saíra de casa. Ele ouvia vozes em todos os lados, como milhares de rádios ligados. Estava no centro da cidade, ou quase lá. Depois do que pareceu horas, deixou de ouvir as vozes e só escutou batidas ligeiras numa porta, seguido de um rangido. 

- Sônia, o que faz aqui? Pensei que só nos veríamos amanhã - uma voz masculina disse.

- Oi, José. Tive que vir. Acho que Gregório está desconfiando de tudo.

- Impossível! O cara é uma mosca morta. Como ia saber?

- Por isto! - A mulher respondeu, puxando a carta do bolso.

Gregório observou a expressão espantada do homem. Não entendia o que estava acontecendo. De onde a mulher conhecia o cara? E há quanto tempo? O que fazia quando ele ia trabalhar? Realmente, era melhor nem saber.

- Onde você encontrou este curinga?

Sônia sentou-se no sofá da sala.

- Em casa, na cama. Se Greg não soubesse de tudo, por que deixaria a carta lá? É um aviso!

José virou carta nas mãos, de um lado para o outro. Era simples, de um plástico vagabundo.

- Talvez ele não saiba.

Nervosamente, ela tirou um pacote de cigarros do casaco que vestia. Escolheu um e acendeu.

- Talvez. Mas não pode ser coincidência. Ele já deve saber de algo, não é burro! Ai, se descobrir tudo sobre as jogatinas e o dinheiro estou fodida!

- Não vai. Acalme-se. - O outro sorriu. - Olha, você sempre toma cuidado. Saí quando ele já está no serviço, fazendo hora extra, e sempre voltou para casa antes dele. Provavelmente foi você quem esqueceu o curinga na cama. Seu marido não é tão esperto a ponto de deixar mensagens.

Ele devolveu a carta a Sônia. Gregório voltou para a escuridão do jeans. Ele não compreendia a mulher. Nunca soube que ela gostava de jogar. Ele conhecia como eram essas jogatinas, altas quantias de dinheiro eram apostadas. A mulher certamente possuía um vício e devia pegar as economias de Gregório, que ele guardava num cofre. Sentia-se um idiota, enganado por tanto tempo.

Sônia e José ainda ficaram alguns minutos conversando. Pela intimidade, ficava óbvio que não eram somente parceiros de jogo. Ela despediu-se dizendo que o amava.



Gregório voltou para a confusão de vozes. Com todas as descobertas, sua mente raciocinava rápida. Será que era culpa da mulher a transformação dele? Tudo indicava que sim, mas pela conversa que escutara ficou claro que ela não tinha conhecimento de nada. Devia haver alguma relação, claro. Pela primeira vez desde o início da manhã, sentiu medo. Precisava voltar ao normal. Mas como, como, COMO?!

Ele era só uma carta de baralho, que qualquer um podia manejar. E sempre fora assim, não? Manejado pelos os pais, pelo trabalho, pela mulher, durante sua vida toda! Um simples joguete controlado por todos, e por sua própria culpa; era um fraco.

A mão da mulher voltou para pegá-lo. Ela fitou a carta como se mirasse ele, Gregório. Havia remorso e desprezo nos olhos dela.

- Curingas são descartáveis - Sônia sussurrou. - Não têm necessidade de fazer parte do jogo.

Ela rasgou o curinga ao meio, deixando-no na calçada. No chão, a carta sangrava.




Demian, Hermann Hesse

sábado, 20 de abril de 2013



Trechos selecionados do livro Demian, de Hermann Hesse. Tradução de Ivo Barroso. 

  Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros: começo a ouvir os ensinamentos que o meu sangue murmura em mim. Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e o sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais mentir a si mesmos. 
(pág. 16) 

 Pela primeira vez saboreei a morte. Tinha um gosto amargo. Pois a morte é nascimento, é angústia e medo ante uma renovação aterradora. 
(pág. 32) 

 Hoje sei muito bem que nada na vida repugna tanto ao homem do que seguir pelo caminho que o conduz a si mesmo. 
(pág. 62) 

 Sempre é bom termos consciência de que dentro de nós há alguém que tudo sabe... 
(pág. 106) 

 Quando alguém encontra algo de que verdadeiramente necessita, não é o acaso que tal proporciona, mas a própria pessoa; seu próprio desejo e sua própria necessidade a conduzem a isso. 
(pág. 118) 

 Quando odiamos um homem, odiamos em sua imagem algo que trazemos em nós mesmos. 
(pág. 133) 

 O que verdadeiramente me fazia bem era o progresso do conhecimento de mim mesmo, minha confiança crescente em meus próprios sonhos, ideias e intuições; a revelação, a cada dia mais clara, do poder que em mim mesmo levava. 
(pág. 142) 

 Tudo seguia padrões rígidos, todos faziam as mesmas coisas, e a calorosa alegria das faces juvenis tinha a mesma expressão lamentavelmente vazia e impessoal. 
(pág. 154) 

 Em toda parte era o mesmo! Todos os homens buscavam a "liberdade" e a "felicidade" num ponto qualquer do passado, só de medo de ver erguer-se diante deles a visão da responsabilidade própria e da própria trajetória. 
(pág. 159) 

 Nunca se chega ao porto. Mas quando duas rotas amigas coincidem, o mundo inteiro parece então o anelado porto. 
(pág. 162) 

 Tudo o que me era importante, tudo o que para mim era destino, podia adquirir sua figura. Podia transformar-se em cada um de meus pensamentos, e cada um de meus pensamentos transformar-se nela. 
(pág. 172) 

 Ela era o mar e eu o rio que nele desembocava. Era uma estrela e eu outra que marchava em sua direção. Encontrávamo-nos e nos sentíamos mutuamente atraídos, permanecíamos juntos e girávamos felizes por toda a eternidade em círculos muito próximos e vibrantes, um ao redor do outro. 
(pág. 173) 

 Antes me havia perguntado muitas vezes por que eram tão poucos os homens que conseguiam viver por um ideal. Agora percebia que todos os homens eram capazes de morrer por um ideal. Mas não por um ideal seu, livremente escolhido, mas por um ideal comum e transmitido. 
(pág. 184) 

Infinitos

sexta-feira, 12 de abril de 2013



Ilumine-se
As sombras já não existem
Os nossos corpos estão em sintonia
E o amor nos mantém erguidos
Não somos perfeitos, só almejamos um lugar onde
Nossas almas se embriaguem de luz e mais luz
Seu rosto é selvagem e os beijos são suaves
Como se temêssemos quebrar nosso mundo
Com a mais leve pressão dos dedos

Levante-se
O dia está lindo
Mas para ser perfeito precisa do seu sorriso
Aquele que você mostra somente a mim
Esqueça a dor, ela é somente um obstáculo
A felicidade está em nós
Só precisamos arrancá-la, e isso dói no início
Porém, meu amor, vale a pena

Entregue-se
A sensação é nova
As nuvens encontram-se tão perto
Que é possível tocá-las
Quando ouvimos aquela música
Eu te olho nos olhos
E sinto que tudo fará sentido
Enquanto estivermos juntos
No nosso infinito.

(11/04/13)

Carne plástica

domingo, 7 de abril de 2013

- Ei, você! Vem cá!

Andando às pressas, não dou a mínima para o que ele fala. Já são 23h00, e todo passo que dou ecoa pelo beco vazio. O bêbado continua me chamando, dizendo vulgaridades, mas sei que não posso sucumbir a raiva. Essa foi a primeira lição que aprendemos depois da invasão: não faça nada, ou morrerá. 

Chego em casa poucos minutos depois. Não é bem uma casa, é um quartinho imundo numa pensão, o único que consegui alugar após a morte dos meus pais. Trabalho como garçonete das 19h00 às 22h30, um dos empregos considerados aceitáveis para gente de minha "espécie".

Deito no magro beliche, mas não consigo dormir, o que acontece frequentemente agora. Assim que fecho os olhos, imagens vermelhas me preenchem. Faz tanto tempo, porém não consigo esquecer: as naves brancas como que caindo do céu e as pessoas em pânico, chorando, gritando, enlouquecendo. Eu tinha nove anos na época e nosso planeta vivia em paz, embora fosse frágil. Os invasores pareciam saber disso, pois tinham a mais alta tecnologia e vieram em grande quantidade.

Nós resistimos. Até o fim. No início, eles tentaram ser amigáveis, falaram que o planeta deles havia sido destruído, queriam ajuda. Nunca soubemos como eles nos encontraram, nem sequer pensávamos que existia outros seres vivos além de nós no universo. Quando viram que não cederíamos, nos atacaram violentamente. Tínhamos armas, mas não estávamos preparados, nosso povo e exército eram menores. Foi a maior guerra que nosso mundo já teve, pior que aquelas nos livros de história. Naves não paravam de chegar, barreiras foram criadas e quebradas e houve traições de ambos lados. Chances para nós? Nenhuma; os que acreditavam na vitória desanimaram-se, desistiram da luta. Perdemos milhões de pessoas, eles também. Quando acabou, não nos importávamos mais com o destino do nosso mundo. Em poucos meses, a mudança aconteceu: fomos escravizados e tirados das moradias. Os invasores nos subjugaram; revoltas aconteceram, mas não mostraram-se suficientes. Deixamos de acreditar.

As coisas melhoraram um pouco depois de cinco anos. Éramos rigidamente controlados, mas não precisávamos ficar trancados em prisões. Meu pai e outros puderam voltar ao trabalho, em um cargo inferior, claro. Ao voltarmos a viver como pessoas novamente, uma sensação estranha me tomou. A rua estava cheia deles. Era como se nós fôssemos os invasores e estivéssemos no lugar errado. Minha casa não existia mais, nem minha rua. A cultura dos invasores reinava, eles mudaram tudo, moldaram o planeta como queriam. Apesar da similaridade que eles tinham conosco, nunca mais me senti em casa.

Como esperado, uma nova raça foi criada. Com novas traições, grande parte do meu povo misturou-se à eles, procriaram, tiveram crianças. Os filhos híbridos eram grotescos, a carne plástica dura e flexível, eram cinzentos e apagados. A nova Ordem era fraternidade e estabilidade, os invasores queriam um recomeço feliz para nós. Mas como deixar para trás as atrocidades que aconteceram, a destruição não só de vidas, mas do nosso âmago, das características que cultivávamos? Entretanto, alguns, como os meus pais, acreditaram nessas promessas e os perdoaram, por causa dos seus espíritos benévolos; outros somente engoliram a raiva e aceitaram a oferta. Entre estes, eu.

Quinze anos! Quinze anos fingindo que estamos bem, mesmo depois da barbárie deles! Mas isso vai acabar. O que me leva a segunda lição: união leva à revolução. Já soube da existência de um grupo, os Clandestinos, que quer atiçar o povo à uma reação. Segundo os boatos, os encontros são totalmente secretos, por receio das autoridades, mas em breve eles compartilharão seus planos e vamos nos libertar. Resgataremos nosso mundo. Na verdade, isso talvez seja algo que inventei agora, com o sono me sondando. Ou, talvez, eu só queira embaralhar sua mente.

Afinal, você é um humano. Você é um deles.

(05/04/13)






Design e código feitos por Julie Duarte. A cópia total ou parcial são proibidas, assim como retirar os créditos.
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