Por vezes pensava em como seria comer carne humana. O gosto é
bom? Parecido com o da galinha? Imaginava por vários minutos, quase
sentia o sabor na boca. Mas esses pensamentos eram estranhos até para
alguém como ele, então logo os esquecia, enterrando-os no dia-a-dia. E
nas palavras.
Ele é escritor. Um poeta qualquer. Publicara um livro de poesias,
praticamente desconhecido pelo público. Vendia pouco. Apesar disso,
investia em sua carreira, trabalhando no jornal local; lá entrava de
modo mais fácil em contato com editores.
Estava coletando material para o novo livro. Seria sobre o
canibalismo no século XX, um assunto que rondava frequentemente sua
cabeça, após conseguir um emprego de meio período no cemitério. No
jornal não ganhava o suficiente para pagar as contas, foi preciso
encontrar uma ocupação alternativa. Embora mórbido, ser coveiro era
prático e não tomava muito tempo: ele só trabalhava quando alguém
morria.
Entretanto, depois que arranjara esse emprego, seus pensamentos
resumiam-se em somente uma coisa: carne humana. Não sabia por que. Por
isso resolvera tentar aquietar essa obsessão colocando-a no papel.
Estava dando certo, ao que aprecia. Ao que parecia.
***
Enquanto folheava uma revista de piadas, o jovem vendedor viu entrar
na livraria uma bela moça. Corpo escultural, cabelos loiros e curtos.
Aproximou-se do balcão.
– Com licença – começou, um sorriso tímido no rosto – Estou procurando o livro
Poesias Vermelhas, de Heitor Villa.
Ele fechou a revista.
– Daquele escritor que acabou de lançar um livro sobre zumbis?
– Sobre canibais – ela corrigiu.
– Ah, certo. Gosta de poesias? Aposto que já serviu de musa para muitos escritores.
A garota enrubesceu.
– Na verdade, não gosto muito de poesias. Gosto desse escritor. Sempre leio o que escreve no jornal.
O vendedor sorriu, charmoso:
– Se quiser posso conseguir um autógrafo. Meu tio é tipógrafo no jornal.
– Sério? – ela disse, eufórica – Seria um grande favor!
Ele afastou-se do balcão e seguiu para uma estante atrás dele. Depois
de uma breve procura, tirou de lá um exemplar do livro de poesias.
– Não tem vendido muito. Poesias muito pesadas. – falou – Por outro
lado, o de canibais não para aqui. Olha, deixe o livro aqui comigo. Na
segunda peço o autógrafo. Aí, é só me dar seu telefone para combinarmos a
entrega.
A moça hesitou, mas assentiu:
– Tudo bem. Obrigada. Será maravilhoso ter um autógrafo de Heitor Villa!
Anotou num papel seu número de telefone e perguntou o preço do livro.
– Para uma garota linda como você, é de graça. – o vendedor lançou-lhe um olhar sugestivo.
***
GAROTA É ENCONTRADA ESQUARTEJADA NO BAIRRO MARTINS
Segundo as autoridades locais faltavam várias partes do corpo
Ele releu a manchete que já havia decorado. No prato, um bife mal
passado, ainda com sangue. O jornal era velho, de uma semana atrás, e a
polícia já descobrira quem cometera o crime. Foi um dos vendedores da
livraria que a moça frequentava. Ele, claro, negou tudo. Até chorou.
Heitor mesmo a enterrou, apesar de não ser mais coveiro. Um ato de agradecimento. Ela foi encontrada com um exemplar do seu
Poesias Vermelhas, aberto quase de propósito no poema mais violento do livro. Bastou isso para que as vendas dele dobrassem.
A vida do escritor mudara desde o lançamento de
Dias de canibal.
Uma relativa fama, um dinheiro bem-vindo. Contudo, seus pensamentos
perturbadores não acalmaram-se. Continuava a pensar, a sonhar, com o
sabor da carne humana. Uma vez, quando ainda era coveiro, cortara o dedo
de um defunto. Mas não teve coragem de comê-lo, no fim das contas.
Quando olhava as pessoas, só via carne. Quando mirava-se no espelho:
carne. Quando tentava escrever, só lhe vinha poemas sobre sua obsessão.
Sentia-se culpado por não ser normal. Culpado pelo que guardava no
congelador, mas nunca usava.
Até ao escrever semanalmente seus contos no jornal sentia-se mal.
Pois percebia que escondia os reais fatos do leitor. No entanto, queria
intimamente que eles lessem as entrelinhas, as confissões subentendidas
que punha em cada trecho do texto.
Mas sabia que ninguém descobriria. As palavras encobriam-no bem.
(Heitor Villa)