Esta é a versão revisada do texto, que postei no Recanto das Letras; mudei algumas coisas, porém, no mais, o texto continua o mesmo.
– Boa noite. – mamãe sussurrou, beijando meu rosto.
– Mãe! – chamei, segurando suas mãos. Não queria que se fosse. – E se eles entrarem aqui?
Ela sorriu, soltando-se delicadamente.
– Lembre-se do que seu pai te ensinou: grande parte dos pássaros não enxergam no escuro...
A
lembrança dissolve-se assim que abro meus olhos. Um barulho quase
imperceptível, como um ruflar de asas, me acordou. Asas... Aves. A
associação é imediata e um tremor percorre meu corpo, enquanto tiro os
pés da cama e sigo o som.
No chão frio, recordo-me da
primeira vez que senti medo dos pássaros. Eu tinha oito anos e costumava
sair para caçar com meu pai; ele carregava uma espingarda de chumbo
velha, herança do vovô. Claro que raramente capturávamos algum animal,
contudo, estes foram os melhores momentos da minha vida.
Um
dia, papai resolveu procurar aves. Sabia de alguns ninhos perto de
casa. Em pouco tempo, alcançamos uma parte densa do cerrado, onde
escutava-se vários trinados de pássaros. Papai observou as árvores, à
procura de sua presa; encontrou-a num bem-te-vi que cantava solitário no
galho do pequizeiro. Ele preparou a espingarda e, quando atirou, torci
intimamente que errasse, como nas outras vezes. Mas foi em vão.O
bem-te-vi parou no meio da canção e caiu.
Meu pai
olhou-me feliz, correndo para buscá-lo. Também o segui e, até hoje, não
sei direito o que aconteceu em seguida: de repente, todos os pássaros
alvoroçaram-se, formando um círculo acima de nós. Foi tão surpreendente
que ficamos sem ação, vendo os pássaros aproximarem-se. Sem aviso, eles
dirigiram-se ao meu pai, atacando seus olhos com violência. Não pude
fazer nada, as aves formavam uma barricada impenetrável em volta dele.
Estranhamente, os pássaros só bicavam os olhos, e não pararam até
deixá-los em sangue.
Papai sobreviveu, embora tenha
perdido o ânimo para tudo a partir daí. Morreu anos depois, mais de
tristeza que doença nos rins. Eu, além de triste, tomei um trauma por
todos os tipos de pássaros, não aguentava nem vê-los em imagens. Mamãe
entendeu e sempre vinha me pôr para dormir, certificando-se que as
janelas estavam fechadas.
Naquela época eu não sabia,
mas o meu medo de aves seria uma sombra eterna em minha existência.
Atrapalhou minhas relações com as pessoas de um modo irreversível:
ninguém me compreendia, então os descartei e me isolei. Comprei essa
casa, longe de tudo, principalmente dos pássaros. Bem, pelo menos
era longe dos pássaros.
O
barulho, antes fraco, tornou-se alto. Eu reconheço um bater de asas em
qualquer lugar. Como esta ave entrou aqui, aí é que são elas. Mesmo
aterrorizado, vou à sala, de onde vinha o ruflar. Na minha mente, as
palavras de minha mãe formam uma ladainha:
Pássaros não enxergam no escuro, pássaros não enxergam no escuro...
Ele mexia-se pelas paredes, voando de um lado para o outro. Se eu ligasse a luz, o pássaro me veria, entretanto, se eu
não ligasse, teria que esperar até a manhã para espantá-lo. E esperar seria uma tortura.
Às
apalpadelas encontro o interruptor e o aperto. A luz preenche a sala e,
pálido, a desligo rapidamente. A meia visão que tive do pássaro
deixou-me horrorizado. Era um bem-te-vi, porém, não um bem-te-vi normal.
Seu tamanho era enorme... maior que uma galinha. Nunca vi algo assim.
Encosto-me
na parede, pensando no que fazer. Não posso enfrentá-lo. Ele faz
lembrar muito do meu pai; olhá-lo é como reviver tudo novamente.
Por isso mesmo você deve matá-lo,
uma voz sopra nos meus ouvidos. Eu nunca tinha escutado-a antes e
fiquei surpreso; desde que esse temor apoderou-se de mim, nunca havia
pensado em detê-lo, sempre fui um fraco. Mas, e se eu conseguisse? E se
eu me livrasse do medo? Uma força quase sobrenatural me sustenta e eu
saio da sala, à procura da pequena pistola que guardava em meu quarto. A
ave, como se soubesse o meu intento, para de voar. Corro para a pequena
cômoda ao lado da cama, pegando a arma e verificando as balas. Há três.
Creio que serão suficientes.
O medo mistura-se com a coragem recém adquirida. O bem-te-vi volta a ruflar com força, me desafiando:
Você não vai acertar, meu chapa.
Na escuridão, não é possível vê-lo, portanto preparo a mira e ligo o
interruptor. Nesse mesmo minuto, o pássaro voa com mais velocidade, em
direção a mim. Antes que me atinja, aponto para o seu peito, mas acerto
sua asa esquerda. Mesmo lento, ele continua me rondando e tenta outro
ataque.
Não erre dessa vez, meu subconsciente pede, chateado com
meu erro anterior. E, milagrosamente, não erro. O peito amarelado do
bem-te-vi suja-se de vermelho e ele fita-me, culpando minha atitude.
Cai. O bico negro abre-se e uma última nota quase sai dele, porém dou o
tiro que o cala para sempre.
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