O garoto sofria de uma doença rara, a Síndrome de Comer Tudo. Ele
comia carnes, metais, madeiras, papéis, ar… A única coisa que não
suportava eram as palavras. Dessas, o menino ficava longe (…)
Diálogos Inconsequentes, pág. 2
Se dependesse dele, nunca pisaria numa biblioteca. Porém sua mãe bateu o pé, obrigou. É bom pra tua educação, o frei Lourenço indicou. Frei Lourenço! Ele preferia ir à casa do Zezé, assistir as novas fitas de bang bang, ou então comer manga com sal. Mas mãe é mãe, tem que obedecer. Ou ficaria de castigo, sem lanche, e isso Quim não suportaria.
Pedalava sua velha bicicleta pelas ruas esburacadas. A única biblioteca da cidade ficava a um bom palmo de distância. Pedalava um pouco e parava, cansado. Em dois minutos, recomeçava a andar. Nesse sistema, alcançou o seu destino uma hora além do planejado. Suado, Quim entrou no prédio que, à primeira vista, parecia abandonado. Tudo muito calmo, sem ninguém; as estantes entulhadas de livros cobriam as paredes e mesas espalhavam-se por todo cômodo. Ele sentou-se, nada interessado pelos livros, esperando que alguém o atendesse.
– Olá – disse uma voz ao seu lado.
O garoto levou um susto. A pessoa chegara sem nenhum barulho.
Uma menina o olhava, curiosa. Era magrinha e usava óculos de aro grosso, que de quando em vez escorregava no nariz. Ele sentiu-se enorme ao seu lado e para acabar com essa impressão, resolveu encurtar a visita. Pegou da calça o papel onde havia anotado os livros que frei Lourenço indicara e perguntou se ela podia ajudá-lo.
– Infelizmente não. – a menina falou, lendo o papel. – Esses livros de história global e biologia animal estão lá em cima, só um adulto alcança.
– E cadê seu pai?
– Meu pai?
– Sim, o responsável daqui.
Ela riu:
– O bibliotecário não é meu pai.
– Então como você sabe onde fica esses livros? – o garoto perguntou.
– Eu moro aqui.
Quim não entendeu a resposta. Ela devia estar brincando.
– Você sabe quando ele volta?
A menina deu de ombros.
– Ih, é capaz que demore. Se tivesse vindo há meia hora, pegava ele aqui ainda.
Ele pensou no tempo que estava perdendo. Certamente Zezé assistia agora às fitas; além disso, sua barriga roncava. Mas se não voltasse para casa com os livros, levaria uma coça. Resolveu esperar mais um pouco.
– Qual o seu nome? – Quim indagou, quando a garota aquietou-se num canto da biblioteca, mexendo nos livros.
– Iná, e o seu?
– Quim.
– Quim. – ela repetiu, colocando uma pilha de livros frente a ele. – Já que ficará, por que não lê alguns livros para matar o tempo? Tem do Lobato, do Carroll. Certeza que vai gostar.
Quim leu os títulos das obras. Caçadas de Pedrinho. Alice no país das Maravilhas. O chamado da selva. Só os nomes já lhe davam sono.
– Não, agradecido.
– Tudo bem. – ela falou, folheando o Caçadas. Em seguida, tirou um lápis e uma caderneta dos bolsos e começou a escrever.
O lápis deslizou pelo papel durante muitos minutos. Impaciente e entediado, ele perguntou o que ela fazia.
– Estou escrevendo um romance. – disse simplesmente.
Um romance? Ao que parecia, ela não completara nem doze anos. Que capacidade tinha para isso?
– Um romance, é? Sobre o que? – Quim continuou a falar, só para o assunto não morrer.
– É sobre um menino que tem SCT, Síndrome de Comer Tudo. Tudo mesmo. Não poupa tijolos, mesas, come até ar e gente. O nome que dei ao livro é Diálogos Inconsequentes.
– Que história sem pé nem cabeça. – ele observou – Por que esse título?
Iná ignorou a crítica. Conhecia o tipo que não lia.
– Quando eu lançar o livro, saberá por que.
Quim riu-se por dentro. Lançar um livro naquela idade, vê se pode. Mesmo assim, por pura falta do que fazer, pediu que ela dissesse o que ocorria ao menino no fim.
– Não sei ainda – Iná começou – Não estou nem na metade. Mas o que pode salvar o menino e as pessoas são as palavras. Ele é alérgico a elas. Verei o que faço.
O garoto olhou o grande relógio na parede. Já passavam das quatro da tarde, teria que vir outro dia. O tempo voara. Esquecera-se até do bang bang e das mangas.
Quim levantou-se devagar da cadeira, como se não quisesse ir. Protelando, expôs outra dúvida:
– Há quanto tempo está escrevendo esse romance?
Iná corou, gaguejou.
– Bem… Desde meia hora atrás. Me veio uma inspiração repentina.
O menino demorou um pouco para entender e, ao compreender, sua face ardeu de raiva. Antes que ela conseguisse dizer algo, Quim montou sua bicicleta e se foi.
Apesar dos queixumes da mãe, ele nunca mais voltou à biblioteca.
Diálogos Inconsequentes, pág. 2
Se dependesse dele, nunca pisaria numa biblioteca. Porém sua mãe bateu o pé, obrigou. É bom pra tua educação, o frei Lourenço indicou. Frei Lourenço! Ele preferia ir à casa do Zezé, assistir as novas fitas de bang bang, ou então comer manga com sal. Mas mãe é mãe, tem que obedecer. Ou ficaria de castigo, sem lanche, e isso Quim não suportaria.
Pedalava sua velha bicicleta pelas ruas esburacadas. A única biblioteca da cidade ficava a um bom palmo de distância. Pedalava um pouco e parava, cansado. Em dois minutos, recomeçava a andar. Nesse sistema, alcançou o seu destino uma hora além do planejado. Suado, Quim entrou no prédio que, à primeira vista, parecia abandonado. Tudo muito calmo, sem ninguém; as estantes entulhadas de livros cobriam as paredes e mesas espalhavam-se por todo cômodo. Ele sentou-se, nada interessado pelos livros, esperando que alguém o atendesse.
– Olá – disse uma voz ao seu lado.
O garoto levou um susto. A pessoa chegara sem nenhum barulho.
Uma menina o olhava, curiosa. Era magrinha e usava óculos de aro grosso, que de quando em vez escorregava no nariz. Ele sentiu-se enorme ao seu lado e para acabar com essa impressão, resolveu encurtar a visita. Pegou da calça o papel onde havia anotado os livros que frei Lourenço indicara e perguntou se ela podia ajudá-lo.
– Infelizmente não. – a menina falou, lendo o papel. – Esses livros de história global e biologia animal estão lá em cima, só um adulto alcança.
– E cadê seu pai?
– Meu pai?
– Sim, o responsável daqui.
Ela riu:
– O bibliotecário não é meu pai.
– Então como você sabe onde fica esses livros? – o garoto perguntou.
– Eu moro aqui.
Quim não entendeu a resposta. Ela devia estar brincando.
– Você sabe quando ele volta?
A menina deu de ombros.
– Ih, é capaz que demore. Se tivesse vindo há meia hora, pegava ele aqui ainda.
Ele pensou no tempo que estava perdendo. Certamente Zezé assistia agora às fitas; além disso, sua barriga roncava. Mas se não voltasse para casa com os livros, levaria uma coça. Resolveu esperar mais um pouco.
– Qual o seu nome? – Quim indagou, quando a garota aquietou-se num canto da biblioteca, mexendo nos livros.
– Iná, e o seu?
– Quim.
– Quim. – ela repetiu, colocando uma pilha de livros frente a ele. – Já que ficará, por que não lê alguns livros para matar o tempo? Tem do Lobato, do Carroll. Certeza que vai gostar.
Quim leu os títulos das obras. Caçadas de Pedrinho. Alice no país das Maravilhas. O chamado da selva. Só os nomes já lhe davam sono.
– Não, agradecido.
– Tudo bem. – ela falou, folheando o Caçadas. Em seguida, tirou um lápis e uma caderneta dos bolsos e começou a escrever.
O lápis deslizou pelo papel durante muitos minutos. Impaciente e entediado, ele perguntou o que ela fazia.
– Estou escrevendo um romance. – disse simplesmente.
Um romance? Ao que parecia, ela não completara nem doze anos. Que capacidade tinha para isso?
– Um romance, é? Sobre o que? – Quim continuou a falar, só para o assunto não morrer.
– É sobre um menino que tem SCT, Síndrome de Comer Tudo. Tudo mesmo. Não poupa tijolos, mesas, come até ar e gente. O nome que dei ao livro é Diálogos Inconsequentes.
– Que história sem pé nem cabeça. – ele observou – Por que esse título?
Iná ignorou a crítica. Conhecia o tipo que não lia.
– Quando eu lançar o livro, saberá por que.
Quim riu-se por dentro. Lançar um livro naquela idade, vê se pode. Mesmo assim, por pura falta do que fazer, pediu que ela dissesse o que ocorria ao menino no fim.
– Não sei ainda – Iná começou – Não estou nem na metade. Mas o que pode salvar o menino e as pessoas são as palavras. Ele é alérgico a elas. Verei o que faço.
O garoto olhou o grande relógio na parede. Já passavam das quatro da tarde, teria que vir outro dia. O tempo voara. Esquecera-se até do bang bang e das mangas.
Quim levantou-se devagar da cadeira, como se não quisesse ir. Protelando, expôs outra dúvida:
– Há quanto tempo está escrevendo esse romance?
Iná corou, gaguejou.
– Bem… Desde meia hora atrás. Me veio uma inspiração repentina.
O menino demorou um pouco para entender e, ao compreender, sua face ardeu de raiva. Antes que ela conseguisse dizer algo, Quim montou sua bicicleta e se foi.
Apesar dos queixumes da mãe, ele nunca mais voltou à biblioteca.
(Elaine Rocha, 18/10/12)
Que delícia ler isto! Muito bom!
ResponderExcluirVeja lá no Sem Pudor, te indiquei para o Prêmio Dardos.
ResponderExcluirBeijão!