– Bom dia, senhor K., trouxe os seus remédios.
Enquanto a enfermeira depositava a bandeja na mesa de
cabeceira, K. sentou-se na beirada da cama, mal-humorado. Mas não
pôde deixar de notar o nervosismo da moça, que tremia um pouco.
Olhou atentamente para ela, desconfiado:
– O quê que há, garota?
Sorrindo, ela disfarçou seu estado.
– Nada, senhor K. O doutor Caio já vem te ver.
Quando a enfermeira saiu, ele tomou os
remédios com asco e começou a ler o jornal da manhã. Na coluna social, viu uma
nota que o regozijou: sua biografia, lançada uma semana atrás, estava no topo
dos mais vendidos.
– Toma essa, L. – disse para si mesmo, mas sua
felicidade desvaneceu assim que lembrou do outro. Largou o jornal ao ouvir
batidas na porta. Era o médico.
K. lhe indicou a cadeira de vime e o jovem
médico limpou a garganta.
– Senhor K. – embora mais controlado que a enfermeira, havia uma sombra em seu
semblante –, infelizmente vim lhe trazer uma má notícia. Como sabia, o estado
do paciente L. era delicado. Você é o único elo dele aqui na casa de repouso,
portanto achei que devia te contar primeiro. L. faleceu esta manhã, em paz. Nós
sentimos...
K. deixou de escutar. Desde que L. mudara de
quarto, sabia que ele estava mal. E quando esconderam a situação dele,
adivinhara que definhava.
Levantou-se da cama antes mesmo do jovem
terminar o assunto. Pegou a bengala e seguiu para a porta.
– Ok. Vou para o pátio – disse.
O doutor afastou-se para ele passar, um pouco
espantado com sua frieza. Porém, já acostumara-se com essa indiferença, por
isso só suspirou e voltou aos seus afazeres.
A manhã estava úmida. K. sentou-se num banco
vazio, pensando no que aconteceu: enfim se livrara do seu rival. Há décadas ele
ficava em seu caminho, atrapalhando seus planos de dominar o mundo. A partir do
primeiro contato, tornaram-se inimigos jurados. Salvar a humanidade era fácil,
mas, para destruí-la, era preciso conhecê-la. E esse conhecimento podia fazer
um homem escurecer por dentro. K. sentia-se assim e por vezes L. tentava
salvá-lo de si mesmo, o que o deixava possesso por sua bondade.
K. nunca conseguiu dominar o mundo, mas tentou
até esgotarem suas forças. Também tentou vencer L., fosse por inteligência ou
força. Conseguia vezes sim, vezes não. Era um duelo equilibrado. No final,
ambos se aposentaram e foram para uma casa de repouso, por coincidência a
mesma. Ainda tiveram diversos confrontos, como o de lançar a biografia
simultaneamente para ver quem vendia mais. K. percebia agora que eram essas
disputas que os mantinham sãos. A relação dos dois, embora antagônica,
mostrava-se totalmente dependente. Precisavam um do outro para continuarem
sendo herói e vilão.
K. olhou o céu, saindo da imensidão de
lembranças. Certamente, L. fora o melhor rival que poderia ter tido.
Se passara alguns dias desde a morte de L. K.
estava sentado na cadeira do quarto, vendo velhos recortes de jornais da época
de vilão. O telefone tocou e ele atendeu sem pressa.
– Alô?
– K., você já viu os jornais? – era seu agente, em tom urgente. – As vendas do livro
do L. dobraram.
Apesar de desejar estar exasperado, um sorriso
tomou seu rosto. O desgraçado do L. reagira.