Um bom lugar para morrer

sábado, 19 de janeiro de 2013

Aquela cidade era um bom lugar para viver e para morrer. Lá, as pessoas viviam longamente e morriam pacíficas, de velhice, em suas camas. Armando Jiménez não nascera em Pilar, mas morava nessa cidade há mais de 50 anos e sabia que logo logo a morte bateria sua porta. Estava no sofá, cansado, artérias doendo, quando ela chegou.

Primeiro escutou duas batidas ritmicas na porta. Ele não conseguia levantar-se, então pediu para a pessoa entrar, a porta estava destrancada. Armando surpreendeu-se ao ver quem era: um homem negro, de meia-idade, que mancava. Não o conhecia e julgou que era um mendigo.

– Desculpe, aqui não tem nada para o senhor. – falou.

O homem não ouviu, ou o ignorou. Sentou-se numa cadeira ao lado do sofá e o olhou o pequeno cômodo com atenção. Jiménez morava sozinho, num barraco diminuto. Além da sala em que estavam, havia um quarto com cheiro de mofo, um banheiro e a cozinha em que fazia seus macarrões istantâneos.

– Não escutou o que eu disse? – Armando repetiu, incomodado com o exame e sem forças para expulsá-lo.

Dessa vez o homem pareceu escutá-lo. Virou-se para ele e mudou o foco do olhar para o seu rosto. Como se tivesse a vista ruim, Armando pensou.

– Você é Armando Jiménez? – ele perguntou, a voz rouca e quase imperiosa.

– Sim... E quem é você?

O negro sorriu, se desculpando.

– Perdão, não me apresentei. Eu sou o seu pior medo.

Armando riu. O cara entrava na casa dele, agia como se fosse o dono, e ainda fazia piada. Ora, faça-me o favor.

– O que, um carvão que manca? Nunca tive medo disso.

O homem parou de sorrir.

– Acho que devemos ter medo do carvão quando ele se alia ao fogo.

Jiménez tossiu. Droga de dor nas costas. Até a respiração falhava. Pegou a jarra de água que estava ao seu lado e encheu um copo.

– Você está me ameaçando? Eu nem te conheço.

– Não é uma ameaça. – o outro começou. – Estou aqui para cumprir um dever, e só.

De repente Armando soube que estava em perigo. Um suor viscoso desceu pela sua testa, consequência do súbito medo e da porcaria do mal estar. Sem tirar os olhos do homem, enfiou as mãos na calça, procurando o telefone celular.

– Sr. Jiménez... Isso não vai adiantar nada. Não vim lhe fazer mal. Foi você mesmo quem se maltratou... Achou que ia viver eternamente?

– Eu vou chamar a polícia, seu desgraçado! – e digitou furiosamente o número da emergência.

Nesta hora o homem levantou-se. Aproximou-se do sofá e tocou Jiménez de leve, bem no coração. Armando, então, sentiu uma dor aguda, mas rápida, e um segundo depois já estava inconsciente.

                                                                         ***

Quando acordou, sentia-se leve... Todas as amarras que o prendiam foram rompidas. Ele sorriu... Mas saiu dos seus devaneios assim que viu o homem ainda ao seu lado.

– O que você fez? Eu não sinto nada!

O negro bocejou, com o claro intuito de irritá-lo.

– Você está morto, Jiménez. Eu sou um ceifador, libertei sua alma do seu corpo.

Armando compreendeu finalmente. Estava morto, morto. E não preocupava-se com isso. Mas achou uma falta de respeito engarregarem a um negro sua morte. Depois de todos os serviços que prestara aos cidadãos, às almas? Era inadmissível.

– Algum problema? – o ceifador adivinhou seus pensamentos.

– Só acho que a própria Morte devia ter vindo me buscar. Quero dizer, não tenho nada contra você, mas certamente...

O ceifador interrompeu a reclamação.

– Olha, a morte não é uma pessoa, como você pensa. A morte é somente o que te aconteceu agora. E eu estou aqui para ajudar; se não quer minha ajuda, tudo bem. Quem vai vagar perdido pelos mundos dos mortos não sou eu.

Jiménez se levantou. Resolveu deixar sua aversão para mais tarde e aceitar a única ajuda disponível.

– Quem irá me enterrar? Agora a cidade perdeu o coveiro. – ele comentou, mais para si mesmo que para alguém.

O ceifador fez um gesto de descaso. E pilheriou:

– Pode deixar, você não estava mais apto para o serviço. Não satisfazia ao Outro Mundo, por isso está morto. Vão achar alguém em pouco tempo, alguém que não tenha tantas dores e não seja tão gordo.

Tição filho da puta.
                                            
                          


Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Trechos selecionados do livro Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios,
 de Marçal Aquino




O amor é sexualmente transmissível 
(pág. 09)

O segredo (...) não é descobrir o que as pessoas escondem, e sim entender o que elas mostram.

(pág. 13)

Sustentar aquele olhar escuro foi uma experiência difícil. Fez com que eu me sentisse desamparado. Fiquei com a impressão de estar sendo visto de verdade pela primeira vez na vida. E também de estar vendo algo que o mundo não tinha me mostrado até então.
(pág. 15)

Queremos o que não podemos ter (...). É normal, saudável. O que diferencia uma pessoa de outra é o quanto cada um quer o que não pode ter. Nossa ração de poeira das estrelas.
(pág. 16)

Na loucura dos amores contrariados não há espaço nenhum para a razão, apenas para mais loucura.
(pág. 22)

Quero saber quantos tiveram a coragem de ir até lá. De encontro ao fim. Eu tive.
(pág. 30)

Era bem mais do que dupla personalidade. Era doença. E não tinha cura. E eu adoeci daquela mulher. Contraí o vírus da sua insensatez.
(pág. 46)

Atire a primeira pedra aquele que não estremeceu ao recuperar, nos lençóis encardidos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mulher ausente. 
(pág. 74)

Conhecê-la fez do passado um mero ensaio, um treino antes de ser exposto à sua incandescência.
(pág. 170)

 Falamos, falamos, falamos. E mesmo assim faltou dizer tanta coisa. E escutar também. Ela nunca disse que me amava. Jamais ouvi dos seus lindos lábios a sentença que pronunciei algumas vezes.
(pág. 171)




Os demônios

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Seus olhos procuravam a igreja, mas ele já sentia onde ela estava. Apertava impaciente o crucifixo em seus dedos, no mesmo ritmo dos seus passos: um aperto, um passo. O crepúsculo lançava sombras no rosto rude, tornando-o, com isso, mais indecifrável. Ao virar uma esquina, avistou o prédio que procurava. Uma igreja permeada de escuridão, como se demônios soprassem sobre ela.

Minha alma está muito perturbada... Voltai, Senhor, livrai minha alma... Ele pisou na gasta escadaria. Gritos vinham de dentro. Embora as portas estivessem abertas, era quase impossível discernir o que acontecia, parcas velas iluminavam o ambiente. Rapidamente, entrou. Poucas pessoas sentavam-se nos bancos e não perceberam sua chegada. Somente choravam.

Levantai-vos, Senhor, na vossa cólera, erguei-vos para me defender... Havia uma menina no altar. Encontrava-se descalça e com as roupas em farrapos. Chutava impiedosamente uma mulher, provavelmente sua mãe. Quando o notou, parou a violência. E sorriu para ele com seus dentes vermelhos.

Tenha Deus piedade de nós e nos abençõe... Aproximou-se dela, com calma. Ele sabia o que a garota se tornara, sabia que podia detê-la. Era tudo uma questão de como fazer; o demônio era fraco, apesar da pandemia que causou naquele bairro.

O homem tirou a mulher do altar e a colocou num banco qualquer. As pessoas, que antes choravam, agora rezavam, os olhos fechados. A menina não mostrou interesse em seu salvamente, só sorria, superior.

De repente, ela o supreendeu. Mas não muito.

Eu sei o que você quer. Não conseguirá. Nunca.

Mesmo com suas palavras arrogantes, notava-se certo temor em sua voz. Ela o reconhecera, afinal.

Você sabe que vou.

Ele concentrou-se em sua mão. Em seu crucifixo. Saiu do lado da mulher e voltou para o altar, onde ficou novamente frente a frente com o demônio. Seus dedos sangravam, gotas vermelhas que pouco importavam. Começou a falar em latim.

A menina parou de sorrir. A igreja tremeu por instantes e ela agarrou-se a ele, tentando calá-lo. Mas o homem também era forte. Repelia os golpes, duros demais para ser de uma criança, e o Poder que ela lhe lançava, utilizando o próprio corpo e as palavras.

Seu filho da puta! Como sua boca imunda conseguiu proferir latim?

 
Como a luz, fará brilhar a tua justiça; e como o sol do meio-dia, o teu direito. Os golpes ficaram mais fracos. O demônio atacava a esmo; intimamente, compreendeu que tinha perdido. Este homem não era um simples homem, ponderou. A ladainha dele continuava e o último verso saiu dos seus lábios tal qual veneno.

O latim é como qualquer língua. Mas parece que vocês, Inferiores, não aguentam umas palavrinhas sagradas, ele falou ao demônio que ofegava. Afastou-se do corpo, que enroscara-se ao seu durante a luta.

Então, uma treva oblíqua deixou o corpo da menina, ante o olhar assustado das pessoas lamuriosas. Algumas desmairam. O homem curvou-se até ela.

Está em paz por enquanto, disse a todos.

Pegou a menina nos braços e preparou-se para ir embora. Os presentes nem deram por isso, achavam-se em estado de choque, de demência. A mãe dela só os fitou, sem ver, e voltou a chorar. O homem passou por eles, sem pressa, e saiu da igreja. Na esquina jogou o crucifixo fora.

O receptáculo de um demônio. O último item para o meu ritual.

(Autor: Heitor Villa, meu alter ego sinistro)






Design e código feitos por Julie Duarte. A cópia total ou parcial são proibidas, assim como retirar os créditos.
Gostou desse layout? Então visite o blog Julie de batom e escolha o seu!